TEXTOS


QUE ESTRADA SEJA

Que levem os anéis
e de cortesia
cortem meus dedos

Que parta
tudo aquilo
que chega
a me romper de saudade

Seja o que for
mas que nunca pare
de ir

Que seja transitório
o trânsito
e o transe
que me atravessam

Que a vontade
de estacionar
prefira o conforto
de um avião
do que meus calcanhares duros

Que a vontade
de me abastecer
não seque jamais
e que o combustível
acabe sempre
pra que o tanque
do imprevisto
se encha de novidades

Que as encruzilhadas
multipliquem meus pontos de vista

Que o risco de colisões
esteja sempre a minha espera
porque a amizade
faz barulho
e transforma aquele
com quem se encontra

Que eu aprenda
a reger as buzinas
dos carros
e da dor

Que as ruas sem saída
fiquem sempre
do lado de fora
mas caso entrem
que estejam apenas de passagem

Que eu esteja
o mais embaixo da ponte
de tudo aquilo se julga acima

Que seja farol
semáforo
ou sinaleiro
o outro nome da fé

Que a conexão
entre eu e o porto
nunca se perca
mas também
que desapareça ao longe
a pretensão
da chegada

Que o caminho corte
o impossível ao meio
e que várias valas tenha
o solo da imaginação

Que as placas da intuição
me apontem o pior caminho
para que eu dê o melhor de mim

Seja o que for
mas que o conceito
não me ampute os pés

Seja lá o que for
mas que nunca deixe de ir
que de todas as coisas
só a estrada não vá embora


FILA INDIANA

Quando deixei a tribo
os tupiniquins
se despediram de mim
um a um
em fila indiana
e em fila indiana
voltaram para a tribo

Vendo isso voltei
botei a mão na cintura
a cintura
botou a mão na cintura
a mão
botou a mão no queixo
que também
botou a mão na cintura
e não aguentou
despencou cintura abaixo
vendo, bestificado
bestificado e vendo
os tupiniquins
voltando para a tribo
um atrás do outro
na mesma
mas exatamente
na mesma ordem
e em fila indiana

Passou, passei
deixei a tribo
quer dizer
quando pensei
que tivesse deixado
lá vinha
meu Deus do céu
os tupiniquins
um atrás do outro
penacho atrás de penacho
pelado atrás de pelado
atrás do pajé
atrás de mim
para dizer que eu
não poderia deixar a tribo
porque senão
sairia da fila


ABACATE

Hoje, tudo o que sinto é abacate
Verde, sem gosto e com um caroço bem no meio.


MEU POEMA DE AMOR

Beijo é brinde
meu amor machuca
não porque é meu
mas porque é pai
que cinta e educa

meu amor cicuta
me menstrua
e me arapuca
crina de navalha
ventre de cumbuca

meu amor cutuca
peito de vidro
com vara curta
meu amor amputa
perna de saci
e abraço de cuca

meu amor prostituta
sem nome na faixa
panetone na caixa
aliança na puta

meu amor machuca
não porque dói
porque não assopra
não sara nem luta

porque dó quem
dá é viola
meu amor batuca
maracatuca

dá o que flor
meu amor gruta

doa em quem doer
doa pra quem doar

porque amor
não é garupa



MAIS DO QUE PALAVRAS

Antes de fechar a porta
Espalhei mais do que palavras sobre a escada
Cobri a cama com mais do que palavras
Deixei mais do que palavras escritas no bolo de fubá
E uma xícara de bem mais do que palavras mornas de camomila
Ele abriu a porta
Bem acomodou seu traseiro sobre sua caixa de entrada
E bem menos do que três palavras dirigiu a mim


INÊS

Debaixo da chuva
com tendinite
sem um puto no bolso
esperava o ônibus
e a morte chegar
Sentou do seu lado
Cão com pêlo molhado
e começou a chorar


MULHER MARAVILHA

Da capa de mulher maravilha, fez uma fronha. Ficou linda, azul e branco, toda estrelada. Ajeitou sua cabeça solitária no meio e sentiu a dor que só as heroínas sentem quando fazem fronhas das capas protetoras.
O intuito não era proteger seu sono de pesadelos, tampouco elevar sua consciência às estrelas. O intuito era continuar sendo mulher, mesmo quando a maravilha fosse embora.


SOBRE A PAIXÃO E AS MITOCÔNDRIAS

Há pessoas que passam despercebidas em nossas vidas, como as mitocôndrias. Não que elas sejam insignificantes como as mitocôndrias, tampouco que mitocôndrias sejam insignificantes, o que quero dizer é que enquanto essas pessoas respiram, as fotos do casamento da filha do ascensorista chamam mais nossa atenção.
Um sorriso de canto no elevador é o ápice de nosso relacionamento. Convivemos com essas pessoas como convivemos com as mitocôndrias. Sabemos que elas existem, mas não queremos saber se elas comeram chester ou peru no natal.
O que nós descobrimos mas sempre nos esquecemos é que a paixão é sorrateira. Tão sorrateira quanto a respiração celular. Não vemos seu nariz, não ouvimos seu ronco, mas de tanto não vê-la, no dia em que vemos, sentimos o coração arrancado pela boca.
A paixão não é fogo, é combustão. É a atividade entre seres combustíveis que se oferecem de sobremesa ao fogo. O fogo é onipresente e não é preciso chave wi-fi para acessá-lo, basta uma única faísca de desejo para ser incendiado.
Não acredito em paixão a primeira vista porque todas as paixões são a primeira vista. Não falo com relação a olhar um rosto pela primeira vez, mas falo em olhar o rosto de sempre como um rosto de nunca. Vez que colocamos fermento nos olhos e os detalhes crescem, gigantizam. Daí, nos perguntamos que nuvem chovia e escondia de nós dois olhos de sol. Que surdez nos lacrava e impedia-nos de ouvir a melodiosa respiração das mitocôndrias.
Eu não sei no bolso de qual paletó a paixão se esconde, tampouco pra onde vai no inverno. Só sei que seu último paradeiro conhecido e registrado foi dentro de mim.


ANTES DO PRIMEIRO SUTIÃ

Nasci mulher e meu pai caiu em lágrimas. Primeira filha mulher e última tentativa: também. Sempre disse satisfeito com a preferência da cegonha, no entanto, ganhei uma camisa do seu time antes do primeiro sutiã. Sem time, menor de idade, mas com uma camisa oficial, troquei os episódios da Barbie pelas transmissões do Brasileirão. Aprendi a colocar os pulmões pra fora todas as vezes que a camisa igual a minha marcava gol. Na verdade, eu não vestia a camisa do time com a camisa igual a minha. Eu vestia a camisa do homem que me deu braços para vestir a camisa que eu ganharia logo na seqüência. A vida mudou de campo, a camisa furou no sovaco e meu pai foi morar mais distante do que um tiro de meta. Sem time e maior de idade, cabe no meu peito a camisa de todas as torcidas com camisa do mundo. E um pacaembú de saudades do meu pai.

 
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